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O artesão III: o druída

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Chegado o entardecer do dia seguinte, não demorei para conversar com os meus filhos. Disse-lhes que precisava de ajuda para remover uma pedra de um lamaçal, a qual seria um ótimo instrumento de trabalho. As crianças sempre se interessavam nos meus afazeres, não sendo difícil de convencê-los a me acompanharem.

Seguimos pelo caminho que antes levava até a grande árvore. Com o tempo, a luz desapareceu. Precisei guiá-los com as mãos para que não caíssem. Depois de mais alguns passos no escuro já reconheci o ambiente. O enorme tronco decepado jazia naquele amplo espaço; deparei-me com a figura do homem-lobo sentado com as pernas magricelas cruzadas e os braços apoiados no tronco. Em sua frente, perto das gigantes raízes, havia uma cova funda. Meus filhos, horrorizados com a estranha presença, correram para trás de mim segurando meus braços. Tremiam como galhos secos. Disse-lhes que precisavam manter a calma, pois aquele homem era meu conhecido. Foi quando o homem-lobo se levantou e disse:

– “A sua direita, há um extenso pedaço de corda, amarre seus filhos”.

Assustado, perguntei:

– “E qual a finalidade?”

– “Suas dúvidas serão sanadas em breve” me disse.

Peguei as crianças em cada braço. Elas choravam desesperadamente, e perguntavam o que estava acontecendo. Disse a elas que precisavam confiar em mim para que tudo pudesse acabar bem. Pus os dois sentados de costas para uma árvore e, em torno deles, amarrei a corda o mais firme que pude. Suas súplicas despedaçavam minha alma, mas algo em mim, algo que eu jamais soube que existia, apodrecia minha existência a cada segundo, fazendo com que eu agisse como o exigido.

– “Certo, agora sente-se em frente àquele buraco e espere até eu voltar a falar com você” disse o homem-lobo com a mais profunda calma.

Fiz o que me pediu. Comecei a observar seus passos. Lentamente, ele foi indo em direção às crianças, sua mão saiu de sua capa segurando a mesma lâmina que já me tocara. Ajoelhou-se sobre elas e, com um sério, cravou lentamente a lâmina sobre o peito da menina. A visão me tonteou, tentei levantar-me, mas meu corpo novamente não se movia. Fazia tanta força que sentia como se meus olhos fossem saltar do rosto. Não havia o que fazer. Sangue jorrava sobre o corpo frágil e pequeno da menina. Ela urrava e me chamava. Quando a vida já havia deixado seu corpo, o homem-lobo enfiou a mão por dentro do ferimento que houvera aberto e retirou o seu coração. O mesmo foi feito com o menino, que olhou nos meus olhos durante todo o ato.

De repente, senti que podia falar. Em prantos e gritos mal formados disse:

– “Essa era seu presente, besta? O que vale o coração dos meus filhos? O que fará com eles?”.

Segurando os dois corações, um cada em mão, o homem-lobo os joga ao chão e responde:

– “Não farei nada”.

Minha ira foi tanta que pude ficar de joelhos tentando, em vão, agarrá-lo. – “Você podia ter morrido, Senhor das Árvores, sem levar ninguém com

você, mas decidiu sobrepor sua ganância acima da sua própria prole e foi condenado por isso”.

Agora, chorando como uma criança, eu disse:

– “Por favor, só me diga a razão. Por que desferir tanta agonia e sofrimento a pessoas que não tinham culpa no que fiz”. Sentando-se do meu lado e colocando o braço por cima dos meus ombros, como um amigo, ele me respondeu:

– “Cada alma que habita esta floresta, Senhor da Árvores, é filho meu. Uns têm mais personalidade do que outros, assim como mais poder. Uns têm tanto poder que podem gerar e alimentar inumeráveis vidas, tanto as que vem da carne quanto as que vem da terra, e essa energia concebida é sagrada, como também tudo o que ela toca. Quando você cortou aquela grande e cintilante árvore, você arrancou o que nutria tudo o que vemos ao nosso redor. Você arrancou o coração dessa floresta, Senhor das Árvores, o coração dos meus filhos”. Depois de ouvi-lo, conseguia falar com bastante clareza, mas ainda não conseguia me mover.

– “Então no fim, tudo foi vingança. E para quê, me diga, para que me apresentar duas opções em que ambas levariam a minha morte e a morte dos meus?”, perguntei.

– “Apenas uma das opções levaria a morte dos seus filhos, você sabe disso”. De fato, a angústia e a raiva me cegavam, mas agora via os caminhos que cruzei e o porquê de darem a esse destino.

Com a cabeça baixa, eu disse:

– “Então, agora faça o que tem de fazer. Mate-me e me esconda nessa cova”.

– “Não posso matar você. Esqueceu que te devo um presente?” respondeu o homem-lobo.

– “A morte, nesse momento, seria o melhor presente que você poderia me dar”, eu disse, já desistindo de lutar.

– “Mas você não irá. Pelo contrário, você renascerá”, logo depois, ele se levantou e ficou me encarando de frente. Com um sorriso que emanava compaixão, ele me chutou no peito, fazendo-me cair para dentro da cova.

– “Você não será um homem melhor nem pior depois dessa noite. Apenas será diferente. Espero que com isso você possa alcançar seus objetivos tomando as escolhas certas”, disse o homem-lobo olhando para dentro do buraco onde me encontrava.

Assustado e sem entender a situação, eu perguntei:

– “O que é você?”. Por um instante, pode se ouvir apenas o ranger das árvores enquanto sua figura escura me olhava de cima, os olhos do homem-lobo brilhavam como estrelas, abriu a boca e mostrou todos os seus dentes em um sorriso odioso. Essa foi sua resposta:

– “Sou um druida”. De repente, raízes começaram a sair da terra e a agarrar meu corpo. Entraram dentro da minha boca e invadiram meu organismo, prendendo-se aos meus ossos e órgãos, a dor era tanta que precisei gritar. A terra preta, vertendo de todos os lados, começou a cobrir meu corpo. Comecei a sufocar e, lentamente, perder a consciência. Suponho que naquele instante já estivera morto.

Não sei quanto tempo decorreu desde minha queda, mas aos poucos pude tomar controle da minha sensibilidade e sentir a terra úmida na minha pele, assim como os vermes gelados que se contorciam na minha volta. De alguma forma, eu conseguia respirar. Reuni forças e, aos poucos, fui me deslocando para fora do buraco, desprendendo-me das raízes que me seguravam já relaxadamente. Quando saí, percebi que o sol brilhava fraco e havia um orvalho nas plantas, era manhã. Meus filhos não estavam mais amarrados ao lado, apenas restava as cordas que os mantiveram. O homem-lobo também se fora.

Comecei a perceber alterações na minha percepção e em meus sentidos físicos. Fechei meus olhos e respirei profundamente sentindo o calor do sol me cobrir. De uma maneira estranha, podia sentir cada movimento executado dentro daquelas matas. Um pássaro que tocava com os pés ásperos por cima de um galho, uma cobra que rastejava entre a relva e as folhas de manjericão, podia sentir a doçura do manjericão como se estivesse próximo das minhas narinas. Ouvia os murmúrios das tocas dos coelhos como o grunhido dos seus dentes mastigando as frutas secas que lentamente caíam e vibravam sobre meus pés. Sentia a seiva fluir abaixo nas raízes e subir para os troncos até atingir as folhas, que se alimentavam. Por toda parte havia sons, que juntos formavam uma melodia que vibrava minhas orelhas e acalentava minha cabeça. Tantas sensações que inacreditavelmente eu poderia decifrar e distinguir cada uma no mais minucioso detalhe. Havia me tornado parte daquela imensa orquestra e podia sentir o espírito de cada ser que tocava a terra. A água que escorre. A pedra que cai. O lobo que caça e o servo que foge. Tudo!

Quando abri meus olhos, comecei a observar meu corpo e percebi que estava esguio e havia adquirido um tom escuro. Da minha pele, raízes contornavam meu corpo de dentro para fora, podendo senti-las da cabeça aos pés sem qualquer sinal de dor. Caminhei em direção a um riacho que deslizava mais à frente. Ajoelhei-me e observei meu rosto no reflexo da água, meus olhos emanavam o mesmo brilho amarelo claro que eu vira outrora naquela árvore. Olhei fixamente para mim, observando minhas mudanças, como também meu percurso até aquele momento. Minha mente estava arruinada com as lembranças que se repetiam nos meus pensamentos, meu corpo estava apodrecendo e minha família fora perdida por culpa de sentimentos egoístas e ideias burras que nunca paravam de tomar conta das minhas decisões. Diante daquela triste visão, eu chorei. E continuaria chorando até o fim da minha vida.

Mas algo me foi dado, não consigo dizer se fora por castigo ou por algum resquício de piedade, tornei-me aquilo que, por falta de altruísmo e humildade, destruí.

Podia sentir isso tão claro quanto os sons na minha volta. Agora, havia certeza de que meu dever é alimentar e guardar toda a vida que é nutrida pelo meu ser. Mesmo não sabendo como, pois, sinto que a força e a resistência me abandonaram quando fui engolido pela terra. Contudo, preciso percorrer um caminho que irá reaver minha existência como útil e digna de ser designada com tal poder, seja quais suas razões de existirem. Meus erros jamais serão apagados da minha memória, levo suas cicatrizes como raízes na minha alma, e continuarei contemplando a natureza com o suor da minha culpa. Seja qual for minha longa e exaustiva jornada, farei por aquela grande árvore que caiu pelas minhas mãos. Farei pelos meus filhos.

Meu nome é Eduarda Gonçalves, moro em Gravataí, região metropolitana de Porto Alegre no estado do Rio Grande do Sul, sul do Brasil.

  • Imagens retiradas da internet.
O artesão III: o druída
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