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Mazanendaba

Há muito tempo, um tempo tão distante que já não é mais importante lembrar exatamente quando, as pessoas viviam em pequenas aldeias ao redor do mundo. Numa dessas aldeias, havia uma mulher chamada Mazanendaba. Ela morava numa casa muito bonita, perto do mar, com o marido e os filhos.

Mazanendaba amava muito sua família. Ensinava os filhos a cozinhar, buscar água, recolher lenha e trançar esteiras e cestos. Mas do que gostavam mesmo era de nadar. Corriam para a praia, se jogavam nas ondas e passavam boa parte do tempo se divertindo. Às vezes, conseguiam pegar um ou dois peixes que levavam para o almoço e comiam junto com o pai.

O pai se chamava Zenzele, um homem alto e forte que fazia esculturas. Se ele via um pássaro que lhe agradava, guardava a imagem na memória, depois entalhava na madeira e a deixava exposta na casa para que todos admirassem. Quando via uma gazela ou um kudu[1] bebendo água num riacho, corria para a casa e o esculpia na pedra. Zenzele gostava muito de seu trabalho. Com o passar do tempo, eram tantas as esculturas de madeira e de pedra, que encheram a casa e passaram a decorar até mesmo a parte de fora.

Durante algum tempo, Mazanendaba esteve feliz assim, do jeito que as coisas eram. Depois, começou a se dar conta de que algo estava faltando em sua vida. É que não havia histórias naquela época. As pessoas costumavam sentar-se ao redor da fogueira depois do jantar e se contentavam em admirar as estrelas espalhando-se aos milhares pelo céu noturno. Às vezes, contemplavam a lua surgindo aos poucos, ou escutavam o vento entre as folhagens e ficavam imaginando se ele queria contar alguma coisa. Mas nada acontecia. Eles bocejavam, bocejavam até adormecer, sem nem mesmo um sonho. Dá pra imaginar o mundo todo sem histórias e sem sonhos? Era horrível! As mães e as avós se esforçavam em achar uma ou duas histórias para as crianças. Mas nada…

Um dia Zenzele disse à mulher que fosse até a floresta e às planícies mais próximas dali para encontrar alguns animais que soubessem umas histórias para contar. Com o coração esperançoso Mazarendaba partir em busca deles. O primeiro animal que ela encontrou foi a Lebre, já famosa por sua astúcia. Ela sorriu, exibindo seus dentes, e disse:

– Eu conheço muitas histórias. Por exemplo,sobre…eee… eee, ah! Estou com tanta pressa! Da próxima vez que nos encontrarmos conto-lhe uma.

Que mentira! A Lebre não sabia histórias. Em seguida Mazanendaba encontrou uma mãe Babuína, desajeitada, que ficou de pé em sua frente e disse:

– Ei, que está dizendo? Você quer me convencer de que os filhos dos humanos tem mais problemas que os nossos? Vocês lhe dão casa para morar, roupas para vestir e comida para comer e, ainda por cima, eles querem histórias, aaaaah, que sorte a minha não ser mãe de humanos!

Logo depois Mazanendaba encontrou uma serpente, a Mamba. Ela parecia muito encabulada:

– Nem sei o que significa essa palavra história! Murmurou com sua voz rouca e desapareceu no meio da folhagem.

A coruja ficou muito irritada com Mazanendaba:

– Você não sabe que eu durmo durante o dia… Onde acha que eu vou conseguir histórias? E, por favor, senhora, me deixe em paz… E foi embora dormir.

Mazarendaba estava perdendo as esperanças, quando viu um grande elefante cinza que sorriu dizendo:

– Eu mesmo não conheço nenhuma história, mas aconselho a pedir para a Águia. As águias são as únicas que voam bem alto e ousam olhar direto para o sol. Talvez conheçam algumas histórias.

A mulher agradeceu ao elefante e voltou para a casa descansar o resto do dia. Na manhã seguinte Mazanendaba estava sentada na frente da casa, quando viu uma águia pescadora que acabava de apanhar um peixe. Correu para a praia gritando:

– Ei, águia, por favor, não vá embora! Preciso falar com você! A águia ficou tão assustada que deixou o peixe cair. Furiosa, soltando faíscas pelos olhos, fitou Mazanendaba e disse:

– Por sua causa perdi meu almoço!

– Eu sei… Por favor, me perdoe. É que eu preciso muito de sua ajuda, explicou Mazanendaba.

– Em que eu poderia lhe ajudar? Perguntou a Águia.

– Sabe, preciso de histórias para contar para meus filhos. Já procurei por toda a parte e o elefante disse que só você poderia me ajudar. Por favor, nem que seja uma história de sua família, oh, águia inteligente, disse ela.

Quando a Águia percebeu que havia sido chamada de inteligente abriu um enorme sorriso e disse:

– Que gentileza a sua de me chamar de inteligente! Bem, meu amigo golfinho me disse que não existem histórias neste mundo. Elas estão bem guardadas no Reino das Águas Profundas do Oceano. É lá que o Rei Espírito e sua rainha vivem com seu povo. O Golfinho pode levá-la até lá quando quiser.

Mazanendaba ficou tão contente que já queria jogar-se nas águas revoltas do mar. Mas a Águia disse:

– Espere! Não faça isso você nem sabe de qual golfinho estou falando…

E a Águia inteligente foi embora. Mais tarde, voltou e pousou na frente da mulher, dizendo:

– Olhe bem para lá e me diga o que está vendo.

– Ah! Sawubona. Golfinho!

Cumprimentou Mazanendaba, cheia de contentamento. Do seu lado esquerdo ela viu um golfinho com ares de amigo, olhando-a com muito interesse. Mazanendaba ficou muito impressionada com aquela face tão amiga e gentil, muito parecida com o rosto daqueles que estiveram em todos os lugares secretos e mágicos.

O Golfinho sorriu, dizendo-lhe que subisse em seu dorso para que pudessem ir ao Reino das Águas Profundas, enquanto ainda era dia. Ela fez como ele disse, agarrou-se firmemente em sua barbatana e os dois desapareceram debaixo de uma onda enorme. E lá se foram para o fundo do oceano. Chegaram a um lugar deslumbrante. Estava tudo iluminado, mesmo sem a luz do sol nem da lua. Mazanendaba fixou o olhar nos olhos do povo Espírito e se deu conta de que a luz vinha deles. Tinham olhos como se fossem estrelas. Suas faces e seus corpos eram muito bonitos, coloridos de verde, púrpura, laranja, amarelo, azul e muitas outras cores. Deram-lhe as boas vindas, e quando falaram era como se uma música maravilhosa enche-se todo o ambiente. Mazanendaba cerrou os olhos e ficou ouvindo o maravilhoso som de suas vozes musicais. O Golfinho achou graça de vê-la assim, tão encantada.

Então, convidaram Mazanendaba para um encontro com o rei Espírito e sua rainha. Ela se sentou respeitosamente e lhes pediu histórias:

– Podemos dar-lhe todas as histórias que seu coração desejar. Mas o que nos dará em troca? Perguntou o rei Espírito.

Mazanendaba não sabia o que dizer… Nada lhe parecia digno do rei Espírito e sua rainha. Então, a rainha sorriu e disse:

– Ficaríamos muito contentes se você nos trouxesse um desenho de sua casa, de você, de seu marido e de seus filhos. Não podemos subir à superfície para visitá-la e conhecer a sua família, mas gostaríamos de saber para onde irão essas histórias.

Mazanendaba nem perdeu tempo. Subiu no dorso do Golfinho e os dois retornaram à praia. Zenzele, seu marido, estava lá com as crianças esperando por ela, sem saber até quando. Ela se despediu do Golfinho e combinou de encontrá-lo depois de 3 dias, ao nascer o sol. A família foi para a casa e ela lhes contou o que tinha visto e ouvido no Reino das Águas Profundas. E o mais importante de tudo: o desenho pedido pela rainha do povo Espírito. Zenzele sabia exatamente o que deveria fazer. No dia seguinte, ele pegou um pedaço grande de madeira e começou a entalhar o desenho grande de sua casa. Depois, esculpiu a face de sua esposa e ficou muito contente. Também desenhou a sua face e a das crianças – o menino travesso com os olhos brilhantes, a menininha, com seu lindo sorriso e o rapazinho mais velho com suas longas pernas… toda a família! Quando achou que tinha terminado o trabalho, adivinhe quem chegou? A Águia! Ela também queria aparecer no desenho. Zenzele, então, a esculpiu bem encima da casa.

Ao amanhecer do terceiro dia, Zenzele pegou o entalhe e o amarrou firmemente com uma tira de couro nas costas de sua mulher. Mazanendaba correu até a praia para encontrar o Golfinho, que já estava esperando. Ela subiu em seu dorso como da outra vez e lá se foram debaixo de uma grande onda para o fundo do oceano.

O povo Espírito ficou encantado com o quadro esculpido. Todos queriam ver de perto o desenho, iluminando com seus olhos de estrelas e elogiando o presente com o canto de suas vozes melodiosas. O rei e a rainha ficaram muito felizes. Eles deram a Mazanendaba um colar feito de conchinhas para ser entregue a seu marido, em agradecimento ao presente recebido. E, para ela, deram uma concha grande, rosa, brilhante e mágica, Disseram-lhe que a concha guardava incontáveis histórias. Centenas de milhares de histórias… tantas que toda vez que ela quisesse, a concha lhe contaria uma nova. Mazanendaba agradeceu-lhes do fundo do coração. Despediu-se, segurando a concha mágica junto ao peito com o máximo cuidado, subiu nas costas do Golfinho e os dois voltaram à praia, onde a família a esperava ansiosamente. Mas não eram os únicos na praia. Todos os habitantes de sua aldeia e das aldeias vizinhas estavam lá para ouvir algumas das histórias que ela tinha trazido. A serpente Mamba, a Lebre, a Coruja, A mãe babuína com seus filhotes, o Elefante e a Águia inteligente também estavam lá. Já era de tarde e as cores do por do sol incandesciam no céu ocidental. A multidão sentou-se na praia e esperou Mazanendaba contar uma história.

Ela pegou a concha mágica, levou-a até o ouvido e escutou-a por alguns segundos. Então, ela começou:

Kwesukesukela…, que quer dizer ”Era uma vez há muito tempo…

“Cosi!” Disseram todos, que significa “Estamos prontos para ouvir”. E foi assim que a primeira história no mundo foi contada. Quando Mazanendaba terminou, os ouvintes pediram:

– Conta outra história, por favor! E ela foi contando uma história depois da outra. Daquele dia em diante a cada pôr do sol era hora de contar histórias. E elas foram se espalhando pelas outras aldeias, de país para país, até chegar a todos os continentes. Foi quando minha avó ouviu algumas dessas histórias, que agora estou compartilhando com vocês.

[1]Kudu – (nome científico Tragelaphusstrepsiceros); antelope que habita, uma sua maioria, o sudeste da Somália e da África do Sul. É um herbívoro e possui notável habilidade para saltar.

 

Autor
História extraída do livro Histórias da África, da editora Paulinas e escrita por Gcina Mhlope, escritora sul-africana, ganhadora de vários prêmios literários entre eles o Sony Award para Radio Drama da Radio BBC Radio Africa pela história “Voce tem visto Zandile?”

 

Mazanendaba
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2 thoughts on “Mazanendaba

  1. Amei!Me trouxe mais vontade de viver e voltar a ouvir contos…Sou como a protagonista quero saber contar historias sabias como nossos anscestrais

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