Éramos uma família gaúcha de classe média baixa e enfrentávamos na década de 80 vários problemas econômicos no nosso estado de origem. Acreditando em melhores oportunidades meus pais tomaram a decisão de irmos morar numa cidade do litoral norte catarinense, Joinville. Éramos 4 irmãos, três meninas e um menino, ambos criados com muito sacrifício.
Na época, eu, Ana com 8 anos, a maior das meninas e o meu irmão mais velho Joaquim de 10 anos,éramos os responsáveis por realizar todos os afazeres domésticos, lavar, limpar, cozinhar e cuidar das nossas irmãs, pois nossos pais, estavam o dia todo trabalhando fora, correndo atrás do sonho de viver com pouco mais de tranqüilidade.
Lembro-me com muita clareza, que eu e Joaquim passávamos os dias sempre com pressa e correndo,tentando dar conta antes do dia acabar do que nos foi incumbido, claro que no meio de tanta responsabilidade brincávamos de casinha e de ser mãe, e de alguma forma arrumávamos um jeito de ser feliz, pois tudo está na capacidade de imaginar e de sonhar das pessoas e, não acredito que exista alguém no mundo melhor para fazer isto que uma criança.Relato isto, hoje com muita certeza, porque tive por muitos anos uma pequena caixinha de papelão com alguns objetos que fui juntando com os anos da minha pequena existência, ali eu guardava algumas tampinhas de garrafa, arame de pão, figurinhas, pedaços de brinquedos quebrados, e algumas coisas mais, sem importância para muitos, mas que para mim tinham um significado enorme… Alegria para mim era a noite na cama brincar com a minha pequena caixinha, pois quando eu a abria era como se o tempo parasse, e o portal dos sonhos se abrisse tornando tudo possível, as figurinhas viravam carta de amor, o arame de pão, uma aliança ganhada de um príncipe e assim a imaginação coloria as minhas historias.
Passavam-se os meses, e meus pais estavam aos poucos conseguindo melhorar nossa situação financeira, ou seja, conseguindo viver com mais dignidade, mobiliando a casa e pagando as contas em dia. Chovia há vários dias, porém em uma noite ela aumentou absurdamente, choveu tanto e tão forte que parecia que o telhado cairia abaixo, lembro dos meus pais varias vezes levantando e conversando sobre a possibilidade de uma enchente e no clarear do dia meu pai nos acordou gritando: “vamos, vamos, a água ta entrando na casa, subiu muito rápido”!Todos nos colocamos em pé, ainda tontos de sono e sem entender direito a gravidade da situação e do desespero dos meus pais, sem saber o que fazer para ajudar.Aos poucos o desespero me agarrou, lembro com exatidão a rapidez com que a água subia dentro da casa, de uma forma que não sei descrever em palavras, lembro dos choros das minhas irmãs, dos movimentos bruscos do meu pai, dos gritos da minha mãe me pedindo ajuda para tentar salvar alguns objetos e, de repente, mesmo sem saber o que faríamos e para onde iríamos meu pai gritou: “vamos, precisamos tirar as crianças, venham”! Neste instante senti além do desespero, a tristeza de deixar tudo pra trás, naquele instante me transformei em impotência e em dor. Quando chegou a minha vez de sair no colo do meu pai, meu coração bateu tão forte que me roubou a capacidade de falar,lembrei-me da minha caixinha que eu a guardava apoiada entre a cama e a parede, corri, peguei-a e isso foi tudo o que pude salvar.
Fomos para casa de uma conhecida da minha mãe que morava no alto de um morro e por lá ficamos algum tempo até a enchente desaparecer e tudo se reerguer. Durante este tempo lá percebi que não tínhamos intimidade e nem liberdade para sermos felizes, minha caixinha que me trouxe tantos momentos felizes me foi roubada, hoje entendo que simplesmente porque me fazia feliz, não éramos dali e nem tampouco nos deixariam ser.
Após algum tempo, com muita ajuda e solidariedade dos vizinhos, amigos e pessoas simplesmente boas, conseguimos voltar para casa, e ai começamos a reconstruir tudo que nos foi levado pela vida. Com os anos entendi que tempo é o melhor cicatrizante já inventado por Deus, ele ameniza e transforma tudo em aprendizado e desta experiência ficou a lição de que a solidariedade é muitas vezes a melhor forma de amar o próximo.
Jomara Lemos – Porto União/SC – Brasil