Contam os “estoriadores” da época que o Felício Tortelli, grande sapateiro de Itapeva, um verdadeiro artesão, já estava pra lá dos 80 anos e tinha a vista cansada. Não acertava os óculos comprados sem receita médica. Era famoso pela humildade e pela desordem que imperava em sua sapataria, a mais antiga e tradicional de Itapeva, tendo iniciado seus trabalhos ainda na velha Faxina, nome que foi mudado em 1938. Mesmo desorganizado, os fregueses não o abandonavam devido aos preços camaradas que ele cobrava pelos seus serviços. Geralmente seus calçados eram feitos sob encomenda e sob medida. Eram os melhores da então Faxina.
Um dia chegou à sapataria o senhor Tonico Ferreira, lá das bandas do bairro do Guarizinho. Tonico Ferreira, também pra lá dos 80, era homem sério, de semblante rude e voz arrogante. Cumprimenta o velho Felício e pergunta pela noiva e pela data de casamento.
– Cumpadre Felício, a data do casamento só depende do meu amigo, o Padre Benjamim, que a quarqué hora entra de férias lá em Itararé e vem pra Faxina.
– Aproveitano sua pergunta, inté vô te convidá pra ocê ajudá a me amarrá!
– Uai, cumpadre Tonico, é todo meu prazê!
– Inté vai interá treis veis que ti apadrinho, né memo?
– Antão, cumpadre Felicio, vamo aproveitá e tirá a midida dos meus pés pra ancê fazê uma butina bem bunita pro dia do meu casório!
Tonico Ferreira tinha os pés curtos e esparramados, formando um semi-círculo. Felicinho, como era conhecido o velho sapateiro, pegou caneta, papel e fita métrica. Media os pés do seu cumpadre e cautelosamente anotava as medidas, coisa que outros sapateiros da cidade não se aventuravam a fazer. Eram sabedores de que não encontrariam formas adequadas para aqueles sofridos pés.
– Quando é que fica pronto, cumpadre Felicio?
– Daqui uns 15 dias tão prontos cumpadre Tonico!
Passados os 15 dias, tá lá o velho Tonico na porta da sapataria.
– Pronto, cumpadre?
– Não!
– Pra mode quê?
– Perdi as mididas, cumpadre.
– Antão nóis tira outra, cumpadre Felício!
Tiraram as medidas novamente e, assim, marcaram o dia da entrega. Novamente o desorganizado sapateiro perdeu o papelzinho onde anotara tudo. Começou a pensar nos coices, na arrogância e no falatório do compadre.
– Fazer o quê? Pensou.
Numa breve reflexão, lembrou-se de São Judas Tadeu, o santo das causas impossíveis. A solução veio na hora. Pegou um prato esmaltado, um pedaço de vaqueta, afiou a faca, colocou dois óculos no seu rosto magricelo, olhou pra frente, olhou pros lados e falou:
– Seja o que Deus quisé!
Meteu a faca na vaqueta, cortou-a na forma do prato, solou os cortes, colou os saltos e pronto. Estavam prontas as benditas botinas. Parecia um rodeiro. No dia marcado chega o velho fazendeiro.
– Tão pronta as butina, cumpadre?
– Sim, cumpadre!
– Antão dexa eu isprementá, pra vê si é preciso de currigi!
O carrancudo fazendeiro enfiou os pés nas botinas, deu uma volta, repetiu o desfile, parou, olhou admirado pra elas, levantou os olhos em direção ao compadre Felicio e admoestou:
– Cumpadre Felicio, ficaram boas as butina, hein!
– Num perca mais essa midida! Ancê tem mãos de fada pra tirá uma midida!
O velho sapateiro, com voz pausada e tímida, respondeu:
– Num tem perigo, cumpadre Tonico!
– Enquanto existir prato esmartado pra vendê, num vai fartá midida pros seus pés! Pensou o sapateiro.
E lá se foi o compadre Tonico todo feliz com aquela rodela nos pés.
Meu nome é Roseli Oliveira Benfica, sou professora, casada, tenho uma filha e moro na cidade de Itapeva, município do interior de São Paulo, no Brasil.