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Vida na Amazônia: Três irmãs e um sonho

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O sol estava de rachar e, mesmo assim, Judite e Maria conversavam entusiasmadas sobre o arrasta pé que aconteceria no sábado à noite na vila:

– O que achaste do meu vestido de bolinhas, mana?

– Muito bonito, tenho certeza que vais arrasar.

Enquanto isso, Francisca, a irmã mais nova, ouvia calada a conversa alegre das irmãs até que, num dado momento, resolveu interrompê-las:

– Vocês não veem que o nosso futuro não é aqui? querem sofrer igual a mamãe? Isso não é vida!

Francisca estava irritada por tentar abrir os olhos das irmãs para a realidade que as cercava, como se já pressentisse os seus futuros.

Não havia muitos pretendentes descompromissados na pequena vila de Juruti Velho, preocupação das moças, menos para Francisca, que sonhava mesmo era sair daquela vida simples e sofrida de mulher amazônica da década de 60. Ela só pensava em estudar, se formar e ter uma bem-sucedida carreira como professora, bem longe dali. Só assim poderia ajudar seus pais a terem uma vida mais tranquila.

Os filhos daquela terra sentiam na pele toda a labuta de seus pais em meio a Floresta Amazônica. Essa, era uma vida que Francisca não almejava jamais.

Quando viu que a irmã mais velha conheceu um rapaz de Uxituba, resultado da festa na vila, comunidade que fica aos pés de uma serra, no caminho para a vila, Francisca não duvidou que ele seria a chance que Judite esperava para se livrar da autoridade rígida do pai. Ela preferiu se entregar para o primeiro rapaz que apareceu disposto a oferecer-lhe um lar, do que permanecer ali. Sua vontade de sair da casa dos pais fora maior que seu sonho de viajar para Belém e conseguir um bom emprego para ajudar a família.

 A irmã mais velha fora morar num puxadinho na casa da sogra, ao invés de tentar a sorte na cidade grande. Judite escolheu a vida simples e sofrida que tanto criticara.

Pelo menos, era isso que Francisca pensava da situação. Deus havia caprichado nas belezas naturais daquele lugar, praias de areia branquinha, água doce e límpida com tons esverdeados, igarapés, igapós, muitos peixes e frutas, dependendo da época, e uma floresta deslumbrante…, mas, definitivamente, a qualidade de vida ali não era nada fácil. Talvez esse tenha sido o preço por morarem numa região tão linda e, ao mesmo tempo, tão isolada do resto do Brasil.

A sobrevivência se dava basicamente da agricultura familiar, caça e pesca. Sua localização geográfica não favorecia nenhum pouco o abastecimento de produtos básicos.

Naquele dia já era meio-dia, hora do almoço, Francisca colocou sua bacia de lado e, debaixo da sombra de um grande cajueiro, foi comer seu mapará assado com farinha de mandioca, baguda, a preferida de seu pai. O refresco de araçá serviu para alegrar o simples almoço.

Enquanto isso, Judite e Maria, as irmãs mais velhas, acabaram de comer e foram dar um mergulho para refrescar um pouco o calor abafado daquele dia, desobedecendo assim, a ordem dos pais de não irem ao rio meio-dia, horário que os bichos andam soltos. Porém a vontade de dar um mergulho acabou falando mais alto que qualquer medo de bichos ou punição.

Aquelas águas esverdeadas era um convite irrecusável! As duas irmãs foram correndo com a intenção apenas de darem um mergulho, no entanto, elas não resistiram a sedução das águas e, a demora, foi inevitável. As duas mergulharam por baixo da ponte de lavar roupa, pularam do galho de uma árvore, apostaram para ver quem conseguia segurar a respiração por mais tempo debaixo d’água, coisas de jovens… estavam tão distraídas que mal puderam acreditar no que seus olhos viam: um avião anfíbio pousando no meio do lago!

Após um tempo admirando a aeronave que seguia rumo a Ponta do Engenho, uma das praias preferida pelos moradores para tomar banho, Maria foi correndo contar a novidade ao pais.

Além do pai, todos que estavam no cafezal também foram ver o visitante inesperado.

– Veja, pai! É um avião…

– Que lindo! – disse Francisca encantada com a novidade.

Nessa hora, sua imaginação ganhou asas… logo se viu entrando no avião e indo embora para bem longe. Quem sabe São Paulo? Já tinha ouvido falar que lá era a cidade das oportunidades, sim, era para lá que deveria ir, talvez escondida? Ela ainda não tinha certeza, a visão da aeronave no meio do lago era fascinante e propicia para orquestrar um plano de fuga agora.

Dependendo da época, tudo era muito escasso e sofrido na região. A fome era velha conhecida de todos, principalmente do Possaser, um velho cachorro magro que surgia do meio do mato e, de vez em quando, saciava sua fome caçando alguns lagartos e bebendo água do rio, quando seu extinto de sobrevivência falava mais alto que a força física.

Coisas básicas faltavam na casa de Francisca: açúcar, sabão, querosene, tecidos, menos farinha de mandioca, café e fé! Seus pais tinham uma pequena plantação de café e mandioca para consumo próprio, e dos parentes que sempre se fizeram presente no puxirum*.

Quando era época de colheita do café Francisca e as irmãs partiam cedo para ajudar. Cada uma com sua bacia, brincando e cantarolando iam colher os grãos, com as ásperas mãos da labuta da vida. A mesma coisa acontecia na época da mandioca, mas, ao invés de bacias, eram paneiros nas costas que elas carregavam.

A casa das irmãs era muito simples, feita de barro e coberta de palha, tinha apenas dois cômodos, um, era o quarto dos pais, o outro, o restante da casa. Cada filha dormia em sua rede, que era atada a noite e desatada durante o dia.

O chão batido, era varrido todos os dias, zelo que dona Isaura, mães das meninas, tinha de deixar a casa sempre limpinha.

Havia um armário improvisado com três tábuas rente à parede, que servia para guardar várias coisas: os velhos pratos esmaltados, colheres, algumas canecas, várias cuias, usadas com utensílios, além de algumas quinquilharias, as panelas ficavam penduradas em ganchos no alto. Num canto da casa, próximo à cozinha, ficava um velho pote de barro com um pedaço de pano branco de algodão lindamente bordado com flores nos cantos, nas cores azul e vermelho, proteção contra ciscos e insetos, que servia para deixar a água retirada do rio bem “friinha”. Havia também uma pequena mesa de madeira rústica e seis tamboretes, obras do seu Joaquim, pai das meninas. O arcaico fogão de barro ficava na parte detrás da casa, num puxadinho coberto, que servia para protegê-lo do verão e inverno amazônico.

As moças da região geralmente casavam muito jovens, realidade da época. Às vezes contra a vontade, ou até mesmo fruto de casamento arranjado. Elas não tinham muitas opções…

Como poderiam sonhar com algo que nem sabiam que existia? Lá em Uxituba era na base da lamparina. Energia elétrica, só na vila, que contava com um gerador de energia movido a diesel, ligado a boca da noite e desligado às 22:00h, e assim permaneceu por muito tempo até que, no ano 2018, o sonho de muitos que partiram e não conseguiram ver a chegada da tão sonhada energia 24h, havia se concretizado… televisão? Nem pensar!

Ah, mas tinha algumas vantagens que hoje em dia se tornaram um sonho! Nesse tempo não existia poluição. Nada de sacolas plásticas, pets boiando no rio, lixos nas ruas, crimes… e tudo mais que a modernidade nos trouxe.

A autoridade rígida dos pais, a época e a geografia, não as permitiam sonhar… Como poderíamos desejar uma vida de cidade grande? Isso era coisa de sorte e determinação! Poucas meninas da região conseguiram vencer esses obstáculos…

Morar na Floresta Amazônica não era para amadores, ainda mais num tempo de educação rígida, principalmente em relação às mulheres…

Francisca, enquanto criança, tinha que se arriscar com as irmãs atravessando o lago numa pequena canoa para conseguir chegar até a sua escola que ficava na vila. Com muito esforço, estudou até a quarta série do primário. Saber ler e escrever era o ápice, para quem viveria apenas na roça.

Após um ano do casamento de Judite, Maria, a irmã do meio, foi morar com uma tia na vila, ajudá-la em seu pequeno comércio, em troca, ganharia alguns poucos trocados. Maria prometeu que sairia da casa da tia direto para Manaus, onde arranjaria um emprego e guardaria dinheiro para buscar Francisca e os pais, daria uma vida sem tanto sofrimento para eles, o que nunca aconteceu…

Após seis meses morando na vila, Maria apareceu grávida de um rapaz que vendia farinha de mandioca para sua tia, presença constante no comércio, logo, foi obrigada a se casar com ele. Seu sonho de buscar uma vida melhor em Manaus, acabara ali.

Francisca sentiu um baque profundo… agora estava sozinha, não tinha amigas e nem as irmãs para conversar, vivia isolada em sua casa de frente para o lago. Sua vida que antes era cheia de risos e segredos das irmãs, tinha se transformado num vazio sepulcral.

Era véspera do feriado de 15 de novembro, Francisca lavava roupa na beira do lago quando notou um certo movimento do outro lado… coisas da companhia de mineração, que fazia estudos na área.

Toda aquela movimentação não deixava de ser uma distração para Francisca que passava horas observando a confusão dos trabalhadores num lugar que antes, raramente se via gente. Francisca avistou um bote vindo em sua direção, que começou a diminuir a velocidade assim que se aproximou, parando logo em seguida na sua frente.

Um rapaz alto, de olhos claros, que Francisca logo percebeu pelo seu biotipo não pertencer à região, quis saber o que uma mocinha, lavando roupa numa ponte feita de tábuas armada em cima do rio, que os nativos usavam para várias coisas, fazia sozinha debaixo de sol escaldante. Ele precisava conhecer um pouco mais da realidade local.

– Olá! Me chamo Carlos, sou técnico em mineração, faço parte da equipe que está fazendo sondagem aqui nas tuas terras, e você, como se chama?

Francisca se apresentou sem olhar diretamente em seus olhos. Carlos logo se encantou pela bela jovem e, a partir desse dia, não desgrudou mais de Francisca.

Sempre após o seu expediente, Carlos passava para conversar e saber um pouco mais da vida da tímida moça. Cada encontro era cheio de novidades e encantos. Carlos já fazia planos: Francisca seria sua esposa, mãe de seus filhos.

Em 3 fevereiro do mesmo ano, Carlos chegou falando que precisava conversar sério com Francisca:

– Nossa missão acabou, a companhia está indo embora, você teria coragem de ir comigo? Vamos casar e morar em São Paulo!

– São Paulo? Você me disse que morava no Sul!

– Sim, eu sou do Sul, mas a empresa me transferiu para São Paulo.

– Pode confiar em mim, vou te fazer muito feliz. Isso é uma promessa!

Francisca mal podia acreditar no que acabara de ouvir, o seu sonho se realizaria… Depois de algum tempo ela ficou pensativa, falou que precisava conversar com a irmã… sua mãe estava doente e ela era a única filha que cuidava da mãe diretamente.

E agora? O que eu faço? Já sei, vou escondida! Peço para Maria vir aqui em casa e conto toda a verdade, assim, não vou ficar com peso na consciência. Depois dou um jeito de mandar notícias para dizer que está tudo bem comigo, até eu me organizar para poder buscá-los. É isso que vou fazer! Pensou Francisca antes de ir falar com Carlos.

– Decidi! Vou escondida, contei meu plano para Carlos que achou uma loucura no primeiro momento, mas disse que toparia só para não perder a mulher de sua vida.

Francisca arrumou suas coisas, e os poucos vestidos que tinha colocou dentro de um saco de farroupilha e deixou escondido num canto, esperando a hora certa para fugir sem correr o risco de ser descoberta.

Então, foi tomar benção de sua mãe. Já estava escurecendo, Carlos a esperava no bote que os levaria até a grande balsa.

Ao ver sua mãe deitada, fraca e com uma expressão longínqua dando-lhe a benção, seus olhos se encheram de água e, com um aperto no coração, virou-lhe as costas.

Quando Carlos a viu chegando vibrou de alegria, deu-lhe um abraço apertado e com a face cheia de lágrimas, falou que não podia…

Choraram juntos, e depois ficou sozinha, olhando aquela noite escura sem ao menos ter a bondade do clarão da lua levando embora o amor e o sonho da sua vida…

Francisca terminou de contar a história para sua neta Antônia e, com um semblante cansado, foi se arrumar para dormir.

* Puxirum – Multirão para ajudar uma determinada pessoa, pode ser para construir uma casa, arar ou colher uma roça.

Meu nome é Francy Andrade, sou natural de Juruti Velho, Pará, mas fui criada em Manaus, Amazonas, atualmente moro em Belo Horizonte. Sou Formada em Letras Língua Portuguesa.

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5 thoughts on “Vida na Amazônia: Três irmãs e um sonho

  1. ” Ao ver sua mãe deitada, fraca e com uma expressão longínqua dando-lhe a benção, seus olhos se encheram de água e, com um aperto no coração, virou-lhe as costas.

    Quando Carlos a viu chegando vibrou de alegria, deu-lhe um abraço apertado e com a face cheia de lágrimas, falou que não podia…”

    O desfecho que eu queria . Bacana, poético e humano.

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