No restaurante Pinguim, comprar carnes era uma rotina diária realizada sempre após as 18 horas, para termos tempo de escolher as melhores peças e para poder temperá-las, dando-lhes aquele sabor especial que só o açougueiro do Pinguim daquela época sabia fazer.
Essas carnes eram colocadas em bacias grandes, temperadas, dentro de uma geladeira ao lado da churrasqueira, que ficava um pouco distante do quarto de meus pais. A lista das carnes pedidas era imensa e todas eram conferidas quando chegavam à churrasqueira do Restaurante e conferidas, uma vez mais pela manhã ao assar, porque o assador sempre lembrava deste ou daquele cliente especial que gostava de comer daquela ou da outra carne, assada ao ponto, mal passada ou bem passada.
Então, não demorou muito para que o açougueiro, ao inspecionar as carnes, notar que a noite tinha uma quantidade e pela manhã havia outra, no caso, sempre em menor quantidade. Mas a reclamação aos patrões demorou um pouco, pois se pensava que certas carnes desaparecidas eram usadas para consumo dos próprios patrões em horários de janta, já que a churrascaria só mantinha atividades durante o dia.
Foi assim por quase um mês, o churrasqueiro acabou entendendo que era roubo, e um roubo dos grandes, pois tinha sumido muita carne e aí ele criou coragem e contou aos meus pais. Como o assador era uma pessoa íntegra, de bom caráter, amigo e profissional por um bom tempo no restaurante, não recebeu nenhuma acusação, somente pediu-se a ele que participasse de uma emboscada para surpreender o tal devorador de carne.
Estava difícil encontrar um culpado, ali naquele ano só estava trabalhando boa gente, honesta e trabalhadora além de terem um grau elevado de instrução.
Registrou-se, então a quantidade de carne,e na primeira análise faltara apenas uma costela, no dia seguinte alguns filés, depois dois pedaços de alcatra, depois uma bacia quase cheia de carnes e então aconteceu que sumiu uma peça grande de picanha e mais duas grandes costelas… foi aí que chegaram a conclusão que não seria esquecimento de colocar no embrulho, como chegaram a pensar, pois meu pai conferia as peças colocadas, embrulhadas e colocadas na sacola para serem levadas até o Restaurante. Concluiu-se que as carnes estavam sendo roubadas, sim, e que deveria ser alguém que conhecia o local, a hora de todos dormirem. Mas quem? Se o açougueiro foi o que avisou, onde os 2 garçons que ficavam para pouso esconderiam a carne? Um cliente esperto? Erro de soma? Um dos filhos que levara para encontros de amigos?
Decidiu-se pela emboscada para descobrir o autor de tal acontecimento desagradável, mesmo sabendo que tal atividade seria muito perigosa, pois a pessoa poderia vir armada, poderia ser alguém muito forte, mas enfim foi a melhor solução.
Meu pai, um cunhado, um dos meus irmãos e um garçom ficaram escondidos na churrasqueira, atrás da mesa, embaixo do carro (o qual ficou naquele dia dentro do espaço da churrasqueira, porque a churrasqueira tinha o espaço comprido e dava para abrigar o carro também), atrás do balcão onde se pesava a carne para a venda e aí ficaram horas, até todos os outros irem dormir. Apagaram-se todas as luzes e somente minha mãe, que ficou rezando, sabia da emboscada, além de mim, que não largava de meus pais, mas naquela noite tive que ficar no quarto de minha mãe muito quietinha fingindo estar dormindo. Demorou muito, mas o ‘sujeito’ veio, com passos lentos, devagar, calado… passos que vieram de encontro a porta da frente da churrasqueira; a chave do cadeado foi mexida e devagarzinho uma das portas foi aberta, calçada com um tijolo para não fazer barulho, não bater a porta. Só podia ser uma pessoa esperta e experiente na arte de roubar, pois a respiração de quem o vigiava parecia mais alta do que o próprio ato da movimentação dos seus passos. Ele entrou e a turma escondida o deixou percorrer o salão, algumas fileiras de mesas e colocar as mãos sobre a bacia de carnes temperadas para que quando eles saíssem de suas ‘tocas’ não desse tempo dele fugir. Até que um deles acende a luz e todos saem de seus lugares rapidamente, pulando sobre o ‘maldito’, uns segurando seus braços, outros suas costas e suas pernas e a gritaria e suspiros de gente nervosa ecoou restaurante acima. Todos saíram de seus quartos, correndo para ajudar, salvar os patrões, sabe-se lá que intenção cada um tinha nesse momento tão tenso.
E quem será o tal ‘maldito’, ladrão das boas carnes? Acenderam a luz e meu pai, verificou que era um conhecido, o próprio funcionário do açougue, que cortava e embalava as carnes, sabia ele direitinho que carnes haveria para roubar. Meu pai, então o questionou e ele numa ‘choradeira danada’ tinha comentado que levava para a família comer e que ele não podia comprar, pois a carne estava muito cara.
Nesse momento meu pai fez uma reflexão com ele de quantos anos ele passou sem ter essa regalia de carne todo dia, que se fazia uma farofa de ovos, comia-se banana como complemento, mas que roubar jamais. Que a pessoa que rouba não ganha a confiança, não encontra um emprego e faz a família passar pelo constrangimento de ter ‘um ladrão’ como pai.
Meu pai o liberou, pois sabia que faltara uma testemunha diferente que não fosse da família ou do negócio e faltando provas achou melhor encerrar o incidente, deixando claro a este homem que a partir de então “a atenção” seria dobrada, haveria sempre um guardião e as carnes seriam colocadas em geladeiras com chaves, em outra dependência do restaurante.
Mas uma coisa meu pai fez corretamente, contou ao patrão do ladrão, gente muito distinta e este passou a vigiá-lo, também. Mas com esse patrão o ladrão não se metia a besta, pois o dono do açougue além de boa gente, era bom na mira, vivia armado e não contava outra vez para atirar em gente que tivesse lhe roubado. Só meu pai mesmo para perdoa-lo, mas entendi o porquê dele não ter chamado a polícia da época, porque sabia que o ladrão não ficaria preso e meu pai temia por meus irmãos e por minha mãe, ele não queria que houvesse nenhum tipo de vingança.
O dono do açougue contou sobre a vida que esse camarada tinha, que realmente tinha família, mas vivia armado e já tinha matado gente. Roubava para dar às amantes e fazer festa com amigos cachaceiros.
Meu pai fez cena que o tinha perdoado para ele não se vingar e cada vez que esse senhor aparecia no restaurante lá estava meu pai de olho. Acredito que ele ainda anda por aí nas ruas de Canoinhas, pois era um homem forte e tinha aquele olhar ‘38’, olhar de ‘peixe morto’, com sua idade estaria preservado como que conservado em pinga.
Nesse caso foi preciso afinar a “astúcia” e fazer de conta que ninguém viu nada, nada foi comprovado e a “pessoa” ainda permaneceu “amiga” da família por muitos anos.
E as carnes? Nada mais foi roubado, valeu o susto, tanto para o ladrão como para nós todos do restaurante. A partir desse dia houve mais precaução, mais atenção, porque carne se compra, porém uma vida, não. Valorizar a vida era uma das lições de meu pai e da minha mãe, que cuidavam de todos, filhos e empregados, como gato cuida de suas crias.
Meu nome é Lenita Maria Fuck, sou professora aposentada, formada em letras pela faculdade Funorte de Mafra SC. Cursei várias especialidades em Educação, Inclusão, ferramentas Lúdicas de Aprendizagem, Letramento, Alfabetização, literatura Infantil, entre outros cursos voltados a educação. Lecionei por 35 anos na escola de Ensino Fundamental Sagrado Coração De Jesus na cidade de Canoinhas, onde moro, estado de Santa Catarina, no Brasil.