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O Artesão II: o concurso

Terminada a tarefa, segui com os cavalos rumo à cidade, levando aquele monumento como arrasto. Chegando nas aglomerações, como previsto, todos olhares direcionaram-se a mim e ao meu presente para Vossa Alteza. Sussurros e fofocas eram feitos nas minhas costas e eu me satisfazia com aquilo. De todos os nomes da minha família, o meu jamais seria esquecido. Cheguei no local onde uma mesa gigantesca abrigava comida para um exército, todos sentados falando e rindo com a boca engordurada como se tivessem esquecido que passam fome o ano todo. O rei estava a alguns metros de distância sentado em sua própria mesa, agarrado em um prato de bolo do tamanho de uma criança. Visão nojenta… As pessoas já haviam começado a erguer seus mimos diante daquele ser abominável, que parecia negligenciar a todos. Segui com meus cavalos em direção a ele e todos fizeram silêncio como se algo lhes tivessem arrancado a voz. Parei diante dele e o encarei, sem dizer uma única palavra. Peguei algumas pedras que trazia e travei na ponta inferior da escultura; aticei os cavalos para que continuassem a puxar.

Aos poucos, aquela grandiosa imagem do rei se erguia diante dos seus estáticos olhos até estar completamente de pé. Comecei dizendo: “Trago-te, majestade, um presente que creio que condiz com tua bravura e importância”, erguendo as mãos para a escultura. O rei que, pelo visto, jamais presenciara tamanha bajulação disse:

– “Diga-me, quem me traz algo tão magnífico?”, falou sem tirar os olhos do presente.

– “Sou um simples artesão que vive das benções das árvores que habitam perto de onde moro. Em uma noite de inverno, percorri a floresta e encontrei a maior e mais poderosa árvore já vista por olhos humanos, sua força é tanta que, só de tocá-la, senti seu poder passar pela minha pele e fluir pelo meu sangue”. O homem gordo ergueu-se da enorme cadeira e aproximou-se tocando a escultura com a palma da mão rechonchuda dizendo:

– “Tens razão, artesão, que raridade tu encontraste!” e riu alto mostrando os dentes amarelos.

– “Então, resolvi criar essa obra em tua homenagem, pois quando chegar o teu encontro com os deuses, tua imagem será perpétua aos olhos dessa cidade”, terminei minha fala com um gesto de reverência.

– “Você tem um lindo talento em mãos, artesão, espero que o cuide com tua própria vida, assim como cuidarei do teu maravilhoso trabalho”, o rei colocando a mão ao peito continuou:

– “Eu agradeço”.

O rei seguiu ao seu assento com um rosto de satisfação. Fiquei parado diante dele esperando mais alguma constatação, mas nada foi dito. Olhei para trás, havia uma fila com cerca de dez pessoa impacientes para entregar seus presentes, mas eu continuei:

– “Majestade, posso estar sendo inconveniente; entretanto, não posso deixar de lembrar: na convocação para o festival, havia uma informação de que o melhor presente receberia uma recompensa digna. Pela sua satisfação, creio que o meu trabalho condiz com essa reputação”. Com as mãos e a boca já por cima da comida, o rei disse:

– “Ah, claro, a doença tem me deixado meio esquecido. Sem dúvida teu presente foi o escolhido”, levantou limpando a boca com os punhos dizendo:

– “Peço a todos que deixem seus bancos e engrandeçam esse homem com as palmas que ele merece!”, todos responderam ao pedido. Uma raiva absurda tomou conta da minha mente. De repente, fez-se silêncio novamente. Engoli a saliva e perguntei:

– “Será apenas isso, majestade?”, meu corpo todo tremia.

– “Não imagino o que mais eu poderia fazer por ti, artesão”, respondeu ele. Os guardas já avançavam para remover a escultura do local, e me encaravam como uma ameaça. Um deles disse:

– “Já pode se retirar, há outros esperando”, queria tirar minha faca da cintura e enfiá-la dentro dele. Precisava gritar, bater, chorar, mas engoli minha angústia como um pedaço de carne mal mastigado doendo pela garganta. Recolhi meus cavalos e retornei. Meus pensamentos me batiam tão forte que quase não tinha forças para andar. O trabalho, o esforço e a esperança foram jogados em um buraco frio e sujo. A culpa não pertencia a mais ninguém senão a mim, por agir como uma mula e confiar em criaturas mesquinhas. A maldade assolou minhas ideias, mas para o bem da minha família, não assolou minhas ações.

Quando voltei ao vale, notei algo que, no tempo exaustivo em que construía aquela maldita escultura, não havia percebido antes. Os imensos vales e as belas florestas perderam a cor vivaz do verde anterior, a cachoeira infinita perdeu seu véu e assumiu uma fina linha que caía tão devagar que pensei que sumiria. O canto dos pássaros já não era audível. Aquilo me assustou por um momento, mas logo em seguida procurei uma razão lógica de que o calor havia secado a cachoeira, queimado o tom das árvores e afugentado os pássaros por causa da brasa ardente do sol. Não pensei mais sobre, entrei em casa e procurei minha cama, da qual não sairia por um bom tempo.

Já era tarde, a lua brilhava forte no céu quando algo me despertou do descanso. Ouvi um barulho que se assemelhava ao assobio do vento, com a exceção de que esse combinava vozes desconhecidas ao fundo. Levantei e raparei que apenas eu havia ouvido a melodia irritante. Caminhei em direção a porta e a abri para ver o que estava acontecendo lá fora. Cerca de alguns metros de distância, bem em frente a minha casa, um lobo estava sentado me observando. Seus olhos eram amarelos reluzentes e seu pelo tão negro quanto a escuridão. Tinha um aspecto sereno, como se estivesse ali esperando a minha chegada.

Quando o observei por alguns segundos ele se levantou e caminhou em minha direção, com passos calmos e delicados. À medida em que ele andava, seu corpo foi crescendo e adquirindo outro aspecto. Um homem tomou a forma do lobo. Seu pelo negro se tornou um manto grande, arrastando-se pelo chão, as patas viraram mãos com unhas imensas incrustadas de sangue. Os olhos continuaram os mesmos, amarelos vivazes escondidos dentro de um capuz. Por baixo do manto, seu corpo era esquelético e estava nu. Ao presenciar a completa transformação, eu entrei e tranquei a porta, apavorado.

Ao chegar na porta, a criatura bateu duas vezes, toques secos e sem muita força. No fundo, eu sabia o porquê ele estava ali. Apesar disso, a forma sutil como ele veio até mim me persuadiu a abrir a porta e perguntar:

– “O que quer?”.

Olhando-me com aqueles olhos estranhos e um sorriso alegre cheio de dentes pontudos ele respondeu:

– “Venha ter comigo aqui fora, não queremos despertar sua família”. Sua voz soava como milhares de vozes em coro. Eu saí e fiquei o olhando de frente:

– “Acho que sei o motivo da sua chegada”.

– “Que ótimo, assim você poupa o meu trabalho”, disse o homem-lobo em um tom sutil e malicioso.

– “Vim te trazer duas opções, Senhor das Árvores, sugiro cautela ao escolher”.

– “Certo, diga”, respondi.

– “Você deverá pagar o que fez com a sua morte ou terá que entregar dois seres que carreguem o seu sangue em troca de um presente que te oferecerei”.

Presente. A palavra ecoava na minha cabeça. Eu disse:

– “Isso não faz sentido, ganhar um presente não deveria ser uma opção. Do que se trata esse presente?”

– “Eu conheço você, Senhor das Árvores, sei quais são suas ambições e o que você pode fazer quando quer alcançá-las. Eu posso tornar tudo possível, você só precisa escolher”, seu sorriso era largo e enfadonho, sorri de volta em resposta.

– “Não, obrigado. Você não terá resposta, uma ilusão ao dia é mais do que suficiente para mim”, quando ia me virar para entrar meu corpo paralisou, não podia mover nenhum membro, tentei gritar, mas minha voz não saía. O sorriso do homem-lobo se desfez, seus olhos começaram a brilhar ainda mais.

– “Se você não der uma resposta, terei de escolher a primeira opção como a definitiva”, disse ele retirando uma lâmina do seu manto.

Colocou uma mão em meu ombro e a outra passou pelo meu corpo como em um abraço, pôs a ponta da lâmina no meio das minhas costas. Toda minha espinha se contorceu em agonia.

– “Agora diga, Senhor das Árvores, qual a sua escolha?”. Senti meu corpo se soltar aos poucos, minha voz saiu como um grunhido:

– “A segunda… Eu escolho a segunda”. Novamente, seu rosto estampou um sorriso, não de escárnio, mas de entusiasmo.

– “Amanhã, quando o sol descer o vale, traga o que pedi pelo caminho que você tanto percorreu, estarei esperando você”, disse o homem-lobo, ao se virar continuou:

– “Sou tão antigo quanto o chão que você pisa, não tente me enganar”, assumiu novamente sua forma de lobo e correu avidamente em direção à escuridão da floresta.

Mais uma vez, sentei-me diante da janela para criar consciência da minha situação. Não pude deixar de reaver minha esperança e crer que tudo poderia ser conquistado. Olhei para meus dois filhos dormindo esticados em suas camas. “Dois seres que carregam meu sangue” ele disse. Poderia ser qualquer coisa. Uma gota de sangue. Um fio de cabelo. Que tipo de magia nasceria disso? Eu precisava arriscar.

Meu nome é Eduarda Gonçalves, moro em Gravataí, região metropolitana de Porto Alegre no estado do Rio Grande do Sul, sul do Brasil.

  • Imagens retiradas da internet.
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