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A cozinheira do restaurante pinguim

Vigiar empregados não é uma tarefa fácil, às vezes, podendo tornar-se uma atividade perigosa. Antes de qualquer comentário esclarece-se que todo empregado do Restaurante Pinguim tinha direito – ao café, ao almoço, ao café da tarde, à frutas, sobremesas e à janta como qualquer morador do restaurante Pinguim.  Podiam comer carnes preparadas de todos os jeitos, massas, lanches e tudo mais, mas não poderiam ‘pegar’ nada sem autorização.

Como já era de meu costume – percorria todas as dependências do Restaurante Pinguim, todos os dias, às 8 horas da manhã, às 15 horas da tarde (quando não tinha aula, nos sábados e domingos) e às 18h30min… Dependências estas que eram estratégicas para o furto, para a sacanagem, para o vício e essa era minha missão, vigiar e relatar tudo ao meu pai, Silvino e à minha mãe, a dona Verena; não que fosse uma tarefa que eles impusessem a mim, mas como eles trabalhavam demais eu sentia que deveria contribuir com alguma coisa, algum serviço em minha idade de 08 anos.

Os pontos estratégicos eram: O monte de laranjas situado ao lado da lavanderia; as prateleiras do corredorzinho onde ficava o telefone com enlatados, utensílios para rechear e cobrir bolos e outras guloseimas; as geladeiras grandes de inox onde se guardavam os frios; um dos depósitos lá de fora – que era uma espécie de adega com engradados de bebidas, barris de pingas, engradados de refrigerantes e outros destilados e ainda existiam os quartos (que não eram fechados, pois como éramos os segundos moradores, as chaves foram perdidas), o reservado escuro (com bebidas expostas à vontade), a churrasqueira que continha carnes, como costelas, que eram assadas antecipadamente e muitas coisas e muitos lugares que se o empregado não fosse honesto eram lugares propícios para a gula, o furto e a safadeza. Quantos sutiãs recheados de queijos e presuntos eu descobri para a mãe; eu chegava perto e dizia: “O que você esconde aí que está com esse cheiro azedo?” Algumas diziam ser o suor pelo dia intenso de trabalho e era mesmo, mas quando a desconfiança me vinha – acertava, eram muitas gramas de presunto e queijo escondidos… Repito, se pedissem poderiam comer, mas não se contentavam com o que era normal, era uma gula incalculável, talvez pelo estilo de vida (vindas de diversos lugares – zona rural de Canoinhas, por não terem tido a oportunidade de conhecer tais alimentos gostosos); Barras de chocolate presas na cintura, litro de vinho embaixo da japona, laranjas enroladas na blusa, talheres nas mangas e, assim, uma a uma das empregadas era descoberta, alertada e algumas punidas com a demissão, por reincidirem no roubo. Apesar de orientações repassadas por minha mãe com cautela, dizia ela que você tem chances de se redimir de tudo o que tiver feito de errado, que existem formas de ser bom de novo e roubar não era apenas tomar posse de algum objeto que não é seu, mas também mentir (roubar o direito da verdade) e trair (roubar o direito da lealdade). Seja sempre fiel aos seus valores e nunca faça nada que você considere imoral; minha mãe em sua maneira humilde de viver, era muito sábia.

a cozinheira do restaurante pinguim

Mas foi numa manhã, já de início da semana, ao passar pela porta do depósito de bebidas que vejo a cozinheira deitada no chão, com a boca na torneirinha do barril de pinga fazendo seu matinal ‘Glu! Glu! Cláp! Cláp!’. Então contei ao pai e ele numa tranquilidade pediu que eu a vigiasse e, se eu visse que esse fato fosse repetido, era para comunicar-lhe. E foi o que aconteceu… De novo… E de novo e pelos outros dias da semana.

Já virara um vício de toda manhã ter de ver e comentar a ela para não fazer isso. Foi que numa manhã – essa cozinheira se encontrava mais ‘atacada’ como eu nunca a tinha visto, começando seu matinal com sua deliciosa cachaça e eu a interrompi alertando que eu contaria tudo ao meu pai e, sem eu esperar, muitas ameaças para o meu lado vieram… Que ela pegaria meu cachorro ‘Moppy’ e levaria para bem longe, que iria cortar minhas roupas novas, que pegaria minha única boneca ‘bebezinho’… E assim me deixando com medo a deixei curtir umas pingas por alguns dias. Vendo que estava sendo demais e que o serviço estava sobrando todo para minha mãe, porque ela sempre estava com dores de cabeça, contei ao meu pai.

 No outro dia cedo, a cozinheira no mesmo ato de seu desjejum, bebendo sem parar ouviu minha voz:

– “Fulana de tal, o pai está aqui! O susto foi tão grande que tivemos que ajudar a salvá-la, pois se afogou, jorrando pinga pelo nariz, ficando cada vez mais roxa e o pai teve que bater em suas costas para desafogá-la… E assim houve uma intensa conversa entre empregada e empregador.

A partir daquele dia não se viu mais atividades no depósito de bebidas, pois ele foi trancado, as chaves sempre estariam no bolso da calça de meu pai e as manhãs ficaram tensas para mim e para a cozinheira. Aquele ‘olhar’ dela para mim era inesquecível! Aqueles ‘gestos’ de torcer a toalha olhando para mim, esfregar a panela resmungando meu nome, atirando as facas na gaveta, atirando objetos na porta em que eu passava… Eu sentia que meus dias estavam chegando ao fim.

Aconteceu então, para a felicidade da cozinheira e para minha tristeza que minha mãe sofreu um acidente na cozinha, cortou o dedo (quase que teve que amputá-lo) indo parar no hospital e repousar por 1 dia; para minha mãe poderia ser um dia, mas para mim foi uma eternidade… aí sim eu me vi sozinha com aquela cozinheira… E não foi que ela conseguiu pegar minha boneca (a mais cara da época, a única boneca de minha vida) e num cepo que se usava para cortar carnes, bater bifes e tudo mais, ela coloca a boneca e começa a decepa-la pé por pé.

O restaurante que com o trabalho de meus pais deu estudo, deu vestes e deu uma estrutura familiar que ninguém esquece; fizeram neste restaurante o casamento de 5 filhas, a ajuda ao casamento de 2 filhos, o alicerce para suas aposentadorias e o casamento para mais 2 filhos. Muitas histórias se passaram no Restaurante Pinguim, muitas Lições de vidas embasaram a vida de mais de 10 pessoas, além de seus funcionários e familiares. Imagina quantas pessoas foram agraciadas por bênçãos, trabalhando junto a este casal no Restaurante Pinguim que ficou por 10 anos servindo à comunidade local de Canoinhas/SC?

– Vai contar tudo ao papai agora?? Eu devia estar fazendo isso em você!!”. Engolia seco, chorava por dentro, mas não me deixei abater na frente dela enquanto picava minha boneca, pois achei que deveria aguentar firme como fazia meu pai quando faltava dinheiro ou minha mãe quando tinha ‘àqueles’ jantares importantes do Rotary e Lions Club para fazer.

Como consegui esconder meus sentimentos referentes à boneca e porque ela analisou que eu mais me importava com o pai e com minha mãe do que com aquela boneca, também que eu não queria que ela fosse uma pessoa viciada em bebidas, me puxou pela mão, me pediu desculpas chorando muito como fosse àquela boneca ‘o cano de escape para seus problemas pessoais’ e nunca mais bebeu. Precisou acabar com minha boneca para poder ficar na razão, na consciência de seus atos, por isso tudo – acredito que seja por isso que aprendi desde cedo a perdoar. No outro dia tudo já tinha voltado à normalidade.

Essa cozinheira trabalhou muitos anos conosco, teve um filho e a mãe a abrigou e muitas foram as lições que essa cozinheira aprendeu com minha família, entre elas, que aquilo que nos fere é aquilo que nos cura, que a dureza da vida é o que nos ensina, que chorar alivia, mas sorrir torna tudo mais bonito e mais fácil e assim nos anos em que ela permaneceu conosco, ela fez parte da família.

Essa cozinheira se deu muito bem na vida, agarrou um ‘partidão’ pelo estômago (pois cozinhava muito bem) – dono de muitas terras – ficou rica, teve sua vida e um dia com minha mãe fui visitá-la e fui recebida como uma ‘rainha’ e nunca mais entrei em contato com ela.

Ela pode ter mudado de vida e eu ter percorrido outros caminhos, mas até hoje não me esqueço de minha boneca, a qual fazia dormir, comer, tomar água, a qual dançava e dormia comigo e era meu refúgio a um meio tão adulto.

 

Autor
Meu nome é Lenita Fuck, moro numa cidade do interior do Brasil, no estado de Santa Catarina, chamada Canoinhas.

 

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