2.190 leituras

Rosto Pálido

O perigo é algo que temos que nos afastar, o nosso corpo parece ter um sensor que nos diz que é hora ou momento de parar, ele vê, ele sente, ele fala. Mas nossa mente as vezes desobedece ordens que ela mesma dá, é louco, é insano, é estúpido, mas é verdade, é assim.

Tem dias que propositalmente colocamos nosso pé na lama, sim fazemos tudo errado. E aquele 16 de abril de 1985 foi o meu dia, um dia que jamais vou esquecer, por isso faço esse esforço de lembrar tudo nos mínimos detalhes.

Era por volta das 23:30, estava garoando, a rua estava vazia, o dia seguinte era de folga, folga rara pra quem trabalhava nas linhas férreas, morava num prédio antigo que eu relutava chamar de cortiço.

A janela de madeira do meu cômodo dava pra uma casa abandonada, na verdade ela não era abandonada, ficou abandonada com o falecimento do velhinho que cheguei a conhecer quando me mudei pro cortiço.

Havia um silêncio medonho, a maioria dos moradores trabalhavam em feiras livres, dormiam cedo, nunca vou esquecer aqueles malditos espanhóis e malditos italianos fazendo baderna logo cedo, na verdade minha birra com eles foi o apelido que me deram, POCO, o quê isso tinha a ver com DEMÓSTENES, eu não sabia, mas enfim.

Eu fiquei olhando aquela casa abandonada, era um gole no café já frio e uma olhada na casa estranha, até que um rosto por trás da cortina rasgada apareceu, eu estava desligado, ou sei lá, bebi os goles de café sem me indagar sobre o rosto na casa, o rosto saiu do mesmo jeito que apareceu.

Foram 5 segundos até a ficha cair e eu deixar o café cair no chão, meu medo demorou para fazer eu me tocar, mas quando me tocou me gelou a espinha, aquele rosto não podia aparecer ali, a casa estava abandonada.

A xícara caiu em cima do meu dedão, mas não tive forças nem pra olhar, fiquei parado olhando pra velha casa, pensando o que seria, ou de quem seria aquele rosto.

A garoa apertou, já podia chamar de chuva, quase chuvarada, eu ali, olhando pela janela, pra cortina velha que naquela altura dizia que eu tinha me enganado, e juro, estava confortável saber que era um engano, mas não, não era engano.

O rosto pálido voltou, olhos grandes, fiquei atento, o rosto olhava de um lado para o outro, mesmo de longe conseguia ver nitidamente o rosto, era feminino, fiquei olhando com uma coragem que eu podia jurar que não tinha, mas a coragem durou pouco.

Depois de uns 2 minutos sem notar minha presença o rosto me viu, eram uns 50 metros a distância, mas ela me olhou nos olhos, diretamente nos meus olhos e não me restou outra coisa senão olhar de volta. Sua mão também apareceu na janela fazendo um movimento de “VEM”.

Era um fantasma, um fantasma a me chamar pra uma casa abandonada com o horário avançado, quase meia noite, qualquer ser humano normal ia fechar a janela, pegar uma bíblia, ler um salmo e dormir, mas não, eu estava destinado ao horror naquela noite.

Saí da janela e me sentei numa poltrona única do meu cômodo, baixei minha cabeça que já estava dolorida com tamanho horror, rezei um pai nosso confuso, errado devido ao nervoso do momento.

Imerso no medo me ajoelhei, pedi ao criador que não deixasse aquela visão me atormentar, aí como eu pedi pra ser um sonho. Mas o criador não me ouviu.

Quinze minutos depois…

Eu ouvi barulho de mão na maçaneta, era eu! Mas como? Passos na escada do cortiço, era eu, sério? Um espanhol gritando

– “Vais aonde, Poco? Tá tarde!!”

Sim, eu estava saindo do cortiço, olhei no relógio e era 00:07, eu estava indo pra casa mal-assombrada, mas eu não queria ir, porquê meus pés não me obedeceram aquela noite?

Jamais vou esquecer o cachorro revirando o lixo, ele parou, me olhou, e seu olhar dizia:

– Não entre na casa!

Mas se eu não estava nem ouvindo minha própria consciência, ia ouvir o olhar do cachorro? Não, claro que não.

Parei em frente ao portão, que na verdade era um pedaço de madeira preso por parafusos enferrujados, era o momento de ser racional, coçar a cabeça e voltar pro cortiço, mas não.

Fiz um sinal da cruz por puro protocolo, minha fé estava de férias, empurrei o portão, adentrei a casa e logo no primeiro passo vi que estava tudo diferente.

Não era uma casa abandonada, muito pelo contrário era linda, um quintal vivo, jardim vivo, um pequeno chafariz com carpas coloridas no centro, os famosos anões de jardim.

Sim, inexplicavelmente o que era madrugada já se fazia dia, e um dia lindo, claro que a beleza diante dos meus olhos tinha um tom macabro, como o sol poderia estar no céu? Era madrugada chuvosa, aquilo não fazia sentido algum.

A cada passo que eu dava em direção à entrada da casa mais o ar parecia puro, pássaros pousavam ao meu redor, o cheiro de grama molhada era perceptível.

Subi uma pequena escada de madeira com quatro degraus, claro que era uma varanda tradicional com samambaias lindas, extremamente lindas, aquela casa azul de tapamento americano estava preservada, nova, mas como?

Olhei pra trás e vi o portão fechado, pensei que ainda era possível regressar, voltar pro cortiço, mas eu estava louco, claro, só podia ser loucura.

Ainda na varanda, em cima de um banco de madeira haviam dois envelopes, um de cor amarela e um de cor verde oliva, pensei por alguns segundos tomar uma decisão já decidida (pegar os envelopes e abrir).

Escolhi o verde oliva, confesso que senti um mal estar ao tocar o envelope, mas abri, e logo o mal estar passou dando espaço a euforia, no envelope tinha 1 moeda de ouro, sim, ouro de verdade, minha felicidade dizia que a visita à casa mal assombrada já tinha valido a pena

Sim, eu podia pegar a moeda de ouro do envelope verde oliva e sair, ainda conseguia ver o portão de saída, mas minha curiosidade fez eu pegar o envelope amarelo e abrir.

O envelope amarelo estava leve, não tinha moeda de ouro, mas tinha uma frase:

“Dentro da casa, na mesa do corredor tem um saco de linho amarrado com corda de cisal, nele tem 10 moedas de ouro”.

Meus olhos brilharam, 1 moeda de ouro já era incrível, mas 10 moedas de ouro seria fantástico, um mero trabalhador das linhas férreas com 10 moedas de ouro poderia escrever outra história, ter outra vida.

Não pensei duas vezes, entrei na casa, meus olhos estavam quase fechados de medo, abri achando ver um ambiente hostil, um ambiente terrível, mas não, era uma casa comum, muito aconchegante por sinal.

Eu estava tão envolvido naquele momento que não me indaguei que aquilo era loucura, a casa era abandonada, como aquilo poderia estar acontecendo?

Dei uma mordida na moeda de ouro e sim, era real, meu medo era aquela mulher de rosto pálido aparecer de repente. Meu olhar periférico passou pela sala vendo…

Um sofá grande e marrom, tinha mordidas no encosto, marcas de mordidas de cachorro, um quadro de paisagem enorme na parede do lado direito, um lustre coberto por teias de aranha, no lado esquerdo começava o corredor que provavelmente estaria o saco de linho, ou melhor, meu ouro.

Fui devagar, o silêncio era gritante, meu pisar no taco de madeira fazia um ranger medonho, dei menos que 20 passos no corredor e vi a mesa, e sim em cima dela estava o tal saco.

Cheguei e vi que também tinha mais dois envelopes, um branco e o outro, também branco com um selo azul, minhas mãos estavam tremendo, claro que eu já estava envolvido pela ambição.

Abri o envelope sem selo e nele dizia que pra pegar as 10 moedas de ouro tinha que deixar a primeira moeda de ouro na mesa, e eu fiz, a lógica dizia que 10 era mais que 1.

Coloquei a moeda na mesa e ela sumiu diante dos meus olhos, suei frio, tinha perdido algo já conquistado. Peguei rapidamente o saco e abri, meu peito se acalmou, estavam lá as moedas de ouro.

Eu não podia ver o portão de saída, mas estava com o saco de moedas, podia ir embora, eram 10 moedas de ouro, já era um feito extraordinário, mas eu não resisti, abri o outro envelope branco, o com selo azul, nele estava escrito (nos fundos da casa tem um baú, um baú cheio de moedas de ouro, mas não só, tem também pedras preciosas).

Meu coração quase parou, um baú cheio de moedas de ouro, seria mais que fantástico, seria sensacional, mas no envelope também tinham letras miúdas que diziam:

Se optar pelo baú, deixe o saco na mesa!

Mais uma vez deixei pra trás algo já conquistado, era a segunda vez. Deixei o saco e fui ao encontro do baú, a mulher de rosto pálido já não me importava mais, a casa não me importava mais, nada mais me importava, meu foco era o ouro, apenas o ouro.

Fui rapidamente pro fundo da casa, nada mais me importava, ao chegar no final do corredor olhei pro meu lado direito e estava lá, enorme, reluzente, majestoso, um sonho, em cima do baú tinha apenas um envelope.

Antes de abri o baú, abri o envelope, a frase era muito mais suave, era a melhor frase do mundo:

– Pegue o baú, é todo seu!

Mas antes de tocar o baú me dei conta da cilada que tinha entrado. Tentei mover o baú e nada, o baú não se movia, fiquei ali, uma hora, duas horas e nada, eu estava exausto, minhas pernas estavam bambas, minha cabeça doía, eu já tinha minhas 10 moedas de ouro, troquei por algo que não conseguia sequer mover um milímetro, estava ali, na minha frente, minha vitória e minha ruína.

Vendo que não tinha mais ninguém no fundo da casa coloquei minha mão nas moedas, já que não consegui mover o baú alguma coisa eu tinha que levar, mas a porta do baú caiu sobre minhas mãos, ficava claro que não, eu tinha trocado minhas 10 moedas de ouro pelo baú.

Triste, desesperado e desesperançado olhei pra trás e lá estava ela, a mulher de rosto pálido, magra, nua, com um sorriso sarcástico no rosto, sua mão raquítica mostrava a saída da casa, e eu atendi.

Passei por ela e perguntei seu nome, ela me respondeu:

– GANÂNCIA! Sim, claro, eu tinha caído nas garras da GANÂNCIA.

Meu coração ficou despedaçado, vi a riqueza mas não me foi permitido tê-la, mas antes de sair da casa a GANÂNCIA proferiu palavras que sim, mexeram comigo.

– Hoje não lhe foi permitido desfrutar de todas essas riquezas, mas nessa vida ainda terás mais uma chance, não há deixe passar, fique atento. DEMÓSTENES”

De cabeça baixa eu saí do portão de madeira e como mágica tudo era como antes, era madrugada, até o cachorro ainda estava revirando o lixo.

Fui em direção ao cortiço percebendo que toda minha experiência tinha durado apenas minutos, ou segundos, o maldito espanhol ainda estava na sacada fumando seu charuto, entrei arrasado no meu cômodo intrigado com as últimas palavras da GANÂNCIA

Agora estou aqui, tudo isso aconteceu há exatos 26 anos, moro a 80 quilômetros do antigo cortiço, toda a história do ROSTO PÁLIDO e o ouro tinham se diluído em sonho na minha mente, mas ela está lá, estou vendo ela no apartamento abandonado da rua de trás, estou com medo, estou apavorado, temo por minha vida.

17 minutos depois. Mão na maçaneta:

– Eu não acredito que estou fazendo isso outra vez!

Descendo o elevador:

– Que Deus me proteja!

*Fotos retiradas da internet.

Meu nome é João Damaceno, moro em Santos, no litoral de São Paulo e sou Mecânico Industrial e escritor.

Rosto Pálido
Avaliação: 4.3 estrelas
Total de votos: 3

One thought on “Rosto Pálido

  1. Parabéns amigo, fico muito feliz vendo contos de minha autoria sendo executados com tanto profissionalismo

    Muito bom, você é um ótimo profissional

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *